3 de novembro de 2006


Negligência
ou falta de planejamento?










O cancelamento do Festival Isnard Azevedo em 2006 leva à reflexão sobre o tratamento dispensado ao teatro em Santa Catarina


Daniel Olivetto e Marisa Naspolini
Especial para o AN/Florianópolis

Na última semana, a população de Florianópolis recebeu a notícia da mais nova ação da administração pública municipal: o cancelamento do Festival Nacional de Teatro Isnard Azevedo, que chegaria este ano à sua 14ª edição. Os motivos alegados pela Fundação Franklin Cascaes (FFC) foram a falta de recursos e a necessidade de reformular o evento. Estas motivações nos levam a refletir sobre o tratamento que vem sendo dado a este importante evento, de projeção nacional, e acentua o que vem se configurando como uma total falta de planejamento e de definição de uma política cultural clara para o teatro, assim como para os demais segmentos artístico-culturais, em Florianópolis (e por que não dizer, em todo o Estado de Santa Catarina?)

Um festival como o Isnard (como é carinhosamente apelidado pelo povo de teatro) cumpre com diversas funções importantes no contexto da cultura catarinense:

1) promove o intercâmbio entre a produção local e de outras regiões do país, instigando os grupos catarinenses a manter uma produção ativa e atualizada com as principais tendências do cenário contemporâneo nacional;

2) forma público, cumprindo com o papel de democratizar o acesso aos bens culturais, através de ingressos de baixo custo e viabilização de espetáculos em regiões mais afastadas do centro da cidade;

3) possibilita o contato com um tipo de produção, experimental, que de outra forma não teria como ser apresentada nestes recantos.

No ano passado, justamente as funções mais importantes que ele parece cumprir foram negligenciadas devido a alegados fatores financeiros, contribuindo para um total empobrecimento do evento, que deixou no ar uma sensação de "apagar das luzes". Como exemplo das ações (não) efetivadas, citamos: os grupos que vieram de longe participar do evento eram obrigados a permanecer no máximo três dias na cidade, para não onerar demais as despesas com hospedagem; o valor dos ingressos foi aumentado em 50%, ação revista após gritaria geral, mas era tarde demais (o público já havia se afastado); as sessões de debates foram canceladas devido ao ônus com pagamento de profissionais especializados, e por aí vai... O que aconteceu? O público não compareceu, deixando o Festival e a FFC de cumprir com o papel fundamental de gerar acesso público e irrestrito ao fazer teatral; os grupos não "trocaram figurinhas"; público e artistas perderam a chance de debater seus trabalhos e aprender com a discussão sobre a diversidade de linguagens e de meios, princípio fundamental para um fazer consciente e transformador. Afinal, o fazer cultural prescinde do debate, do estudo sobre a obra, das relações entre as impressões do público e os impulsos criadores. Conclusão: ano passado, todo mundo saiu perdendo.

Ao cancelar a edição deste ano, a FFC lançou data e formato novos para 2007. Uma das novidades é o retorno do caráter competitivo do evento, dissolvido desde a penúltima edição (e que possibilitava um avanço em direção a modelos mais arejados). O festival passará a oferecer um prêmio de R$ 10 mil para o melhor espetáculo adulto e de R$ 3 mil para o melhor espetáculo de rua, além de eliminar a categoria infantil. Ora, a tendência atual deste tipo de evento é justamente minimizar as diferenças entre categorias (adulta, infantil, de rua) e apostar em espaços múltiplos (para muito além dos palcos convencionais). Cabe também perguntar que tipo de critério é este que define tamanha diferença de valor para espetáculos de rua e de palco. Trata-se de um tratamento menor dado à arte da rua? O que dizer então da retirada do público infantil, fundamental quando pensamos na formação de futuros espectadores e amantes do teatro?

Nas últimas edições, os debates promovidos pelos espetáculos feitos para crianças (de idades entre 3 e 80 anos!) geraram discussões muitas vezes mais consistentes que os próprios debates dos espetáculos adultos. Esta mostra, às vezes desprestigiada por parte da classe teatral, mas de grande relevância para o público em geral, sempre apresentou um nível estético tão qualificado quanto o dos espetáculos da mostra adulta ou de rua, e algumas vezes maior... Os eventos mais maduros no cenário teatral brasileiro já aprenderam há muito que esta supremacia do teatro-de-palco-italiano-para-adulto estimula um preconceito tão nocivo para os artistas que se propõem a outras linguagens quanto para o próprio público.

Vale ainda lembrar que a mudança de data de realização de um evento deste porte não pode ser feita sem planejamento consistente. Não se trata apenas de encaixá-lo num período de pauta disponível nos teatros (que parece ser a lógica da escolha do mês de abril), nem de decidir, de uma hora pra outra, que o festival pode se tornar uma atração turística do verão ilhéu. A mudança para a temporada de verão requer outro perfil, outro modelo, outro conceito. Não é possível "recortar e colar" neste caso.

Há pelos menos cinco anos, a classe teatral vem se dispondo e se propondo a fazer uma reformulação do modelo do festival (porque todo evento, por melhor que seja, precisa ser revisto constantemente, com o risco de congelar-se em estruturas mofas e sem vida). É de conhecimento público que a falta de verbas acarreta restrições, mas também isso deve ser discutido. Se, como alega a FFC, os motivos são mesmo a falta de recursos e a necessidade de repensar o modelo, sugerimos:

1) que este modelo seja realmente revisto e, de preferência, junto a quem faz teatro. No entanto, o que parece é que o novo modelo já foi definido e será implementado sem qualquer tipo de consulta à comunidade teatral. Esta postura só vem contribuir para aumentar a decepção geral que se instalou no meio;

2) se há problemas com recursos, há que repensar todo o processo de financiamento da cultura no município (e no Estado).

Vivemos um momento político de absoluto descaso com o fomento à produção local. Abundam castelos de areia, com belas construções sem consistência alguma. A ausência dos eternamente prometidos, e jamais lançados, editais públicos obriga toda a produção cultural a lidar exclusivamente com a lógica perversa das leis de incentivo (oops, exceção digna de registro: o governo federal, através do MinC/Funarte, vem lançando editais públicos anuais, o que tem possibilitado minimamente a sobrevivência de alguns projetos em terra catarina). Isto sem falar na inexistência de um Conselho Municipal de Cultura, que, além de reivindicação antiga, é condição sine qua non para que o município integre o Sistema Nacional de Cultura. Mas o fato é que, com o cancelamento do Isnard, fica evidente o quanto é difícil depender exclusivamente dos recursos provenientes do empresariado para manter as atividades culturais. Se a FFC, com todos os recursos e aberturas políticas de que dispõe, encontra dificuldade para a captação, o que dizer da imensa maioria das produções independentes catarinenses? E quem melhor do que a própria administração pública para mudar este estado de coisas, garantindo um orçamento digno para a cultura?

É necessária uma atitude política clara. Ou o poder público manifesta seu interesse efetivo em dar continuidade a este projeto - que pode e deve se ampliar, se re-qualificar e trazer uma contribuição singular e diferenciada à cidade de Florianópolis - ou permanecemos no faz-de-conta - as mudanças solicitadas por quem pensa as reais necessidades da classe teatral e do público ficam guardadas numa gaveta e o festival segue sendo organizado burocraticamente como mais um ponto no calendário municipal.


· Daniel Olivetto é ator, educador e diretor teatral; integra a Cia. Experimentus Teatrais e é aluno de graduação do Centro de Artes da Udesc

· Marisa Naspolini é atriz, diretora e professora; integra a Gesto (Associação de Produtores Teatrais da Grande Florianópolis) e é mestranda em teatro no Centro de Artes da Udesc

Nenhum comentário: