1 de dezembro de 2008

Galette Surprise

Este é um ensaio que escrevi pra disciplina de crítica, que acabou hoje. Como o Stephan me deu 9.5, e pra comemorar que sou quase formado, resolvi colocar ela por aqui! Lá vai...


PALADARES AGRIDOCES E MORTES DE AMOR

Em “Galette Surprise et son coulis de fruits rouges”, montagem do grupo argentino La Mano Marca, o amor não correspondido é o drama de quatro empregados de um restaurante, cujos clientes começam a passar mal e morrer, numa reação coletiva à suas deliciosas galettes - tortas salgadas típicas da culinária francesa. A trama parece simples, mas a estrutura interna do trabalho é um tanto mais complexa. Como uma galette, simples e saborosa, mas laborada de forma complicada com ingredientes refinados. O título do espetáculo (algo como "torta surpresa com cobertura/recheio de frutas vermelhas") nos chega como metáfora: uma torta para falar de amor. Mas, vamos então falar de amor, para falar da galette.

Quase todas as histórias de amor começam como num baile de máscaras – com o perdão da pieguice -, uma celebração onde o que se conhece é apenas a camada que cobre o rosto dos enamorados. Debaixo da exuberância dos mascarados há carne, osso, imperfeições, desajustes, e por vezes uma alma sôfrega que, por desejar o amor, se faz imagem da perfeição. A imagem, que simula a perfeição escondendo o que há de mais frágil e estúpido em todos nós, é a que encanta. A máscara é como um cartão de visita. Só depois descobriremos (ou não) o que há por baixo delas, discussão já desgastada depois de tantas falas sobre a banalização da imagem na pós-modernidade. Mas o que dizer quando a máscara é a própria exposição da fragilidade? Quando a própria feição da tristeza e vazio é a principal imagem que se tem para mostrar ao outro? O que haverá embaixo de tal feição? Ou seria melhor que nos perguntássemos o que haverá entre as camadas da galette?

Em “The Limits of Interpretation”, Umberto Eco afirma que um texto pode ser pensado como uma pizza, com seu recheio (seu significado) na superfície, ou como uma torta, com recheios entre várias camadas, possibilitando que se adentre seus significados à custa de algumas boas garfadas. A galette dos argentininos do La Mano Marca, parece assim, de massa salgada, mas de frutas vermelhas, simples, mas de receita delicada, recheada de elementos do teatro chamado "pós-dramático", em que o a noção de texto no teatro sofre grandes rupturas.

O texto de Laura Fernández, encenado por Diego Brienza, cria dois espaços para a ação: uma cozinha, onde em volta de uma grande mesa/balcão se prepara os pratos que serão servidos no piso superior, o restaurante (o segundo espaço). O público, situado no plano da cozinha em três lados da cena, em grande proximidade, acompanha o agitado cotidiano dos quatro personagens, que se utilizam de uma escada para transitar entre os dois pisos, atendendo aos clientes do restaurante. O clima entre eles é de grande desentendimento, ainda que, num primeiro momento, não saibamos razão real deste conflito.

A inserção do real no acontecimento teatral, uma das características do teatro pós-dramático, é parte do charme da montagem, e dá base a esta estrutura complexa. Com grande limpeza de elementos, o espetáculo se apresenta de forma bastante realista: ouve-se barulhos dos clientes no piso superior, os pratos parecem ser realmente preparados em cena; o próprio uso de um espaço cuja arquitetura é realmente a de uma sala com uma escada lateral (e não um cenário construído para tal); a luz branca durante quase todo o tempo de cena; figurinos cotidianos, e comida... muita comida. Tais elementos parecem propor uma identificação mais direta com público.

Entre uma torta e outra, subidas e descidas, discussões e desentendimentos, percebemos fiapos de uma história de amor, ironicamente não correspondida entre os quatro: o cozinheiro que ama a gerente, que ama o garçom, que ama a garçonete, que ama cozinheiro, que ama a gerente... Outro elemento pós-dramático do trabalho seria justamente esta ausência de nomes. Chamados por suas funções, eles tem características bastante distintas, e parecem explorar uma corporalidade que condiz com o realismo proposto. Tão frágeis, e aparentemente expostos - sem máscaras - eles só demonstram suas paixões no plano de suas imaginações, momentos que criam um flash de fantasia de cada apaixonado no plano real da cozinha. Assim, a iluminação fria de lâmpadas fluorescentes dá lugar a uma luz lilás forte, que aliada a uma canção romântica, rompe com o plano da fala dos personagens, criando um plano fantasioso em que podemos perceber seus desejos não correspondidos. Se estamos falando em camadas, aqui podemos então identificar três camadas de realidade: a da relação verbal dos personagens; a dos acontecimentos do restaurante; e a das fantasias amorosas.

Enquanto no piso inferior os desejos entram em tensão (de tão contidos em cada personagem), no piso superior, aos poucos, o restaurante começa a reagir à comida: crises, vômitos, mortes por meio das galettes. Reações causadas pela receita dos que morrem de amor? A garçonete, moça mais nova, declara-se constantemente ao cozinheiro, e este, desvia-se. Vez por outra parecem confessar o que a máscara de tristeza não diz. Mas, o que não foi dito, quando tudo parece exposto, nos vem à tona aos poucos, sem muitas certezas.

O diálogo entre os espaços parece nos dar pistas sobre isso. A simultaneidade proposta pela direção e pelo texto – outro elemento pós-dramático - coloca em tensão esses acontecimentos e, assim, dialogam o plano dos acontecimentos do piso superior – seus sons e tensões - com o plano da cozinha. O restaurante situa-se como um plano narrativo que gera tensões no plano da ação (a cozinha). Em uma crítica recente a esse mesmo espetáculo, o crítico Walter Lima Torres nos fala dessa relação entre planos comparando “Galette Surprise...” com a peça de Ionesco “O Rinoceronte” em que toda cidade começa a transformar-se em rinocerontes. Assim, os acontecimentos do plano narrativo, que nos chegam de forma crescente, geram uma tensão no plano da ação.

Neste caminho, o texto não é apenas o do plano da conversa do personagens - seu cotidiano, desilusões, desejos não manifestados, entre outros conflitos. O diálogo entre espaços, a proximidade com o público, o realismo proposto, a ausência de nomes, entre outros signos nos desenham um outro texto: o "texto da representação", ou "texto da performance." Para Hans Thies Lehman, o teatro pós-dramático “é um teatro de estados, e de composições cênicas dinâmicas” . Estabelece-se, portanto, uma dramaturgia visual que, como não está pautada pelo texto, nos oferece a possibilidade de leituras particulares sobre uma mesma obra.

Assim, os significados de “Galette Surprise...” nos são revelados à garfadas mais profundas, perfurando as camadas de um espetáculo que explora o “não-dito” e o uso de metáforas como elementos fundamentais. Neste trânsito entre dois espaços, um parece revelar o outro como um espelho de sensações não verbalizadas. A cozinha da galetterie nos fala – sem dizer - da ameaça constante de uma morte de amor.

Referências:
MARCONDES, Danilo. Cultura e Modernidade: Ciência e Filosofia. Artigo. In: Cultura e Imaginário.
LEHMAN, Hans Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac & Naif, 2006.
TORRES, Walter Lima. Crítica ao espetáculo “Galette Surprise...” [www.lamanomarca.blogspot.com].

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom! Realmente não é fácil fazer uma boa crítica! E parabéns pela conclusão do curso (já se pode dizer assim?)!

abraço

turnes disse...

O teatro pós-universidade é que é a nova onda do momento.

parabénsh

bejo

Anônimo disse...

Oi chico linguica,
meu nome e Diego Brienza, sou o diretor de Galette... e quero te felicitar por a seriedade de seu trabalho.
Si vocé me permite eu gostaría de colocar en nosso blog de la mano marca (www.lamanomarca.blogspot.com) un link con su blog, e uma parte de este trabalho que profundiza minuciosamente en nossa peca.
Saludos e muito obrigado.
(disculpas por meu portuñol tan horrible)