por Renato Turnes,
ator, diretor, e neto do Bela Lugosi
Caros leitores, tão tradicional quanto o peru Sadia e o CD da Simone, minha lista fílmica de 2010 do blog do Dani está aí. Lembro que ela não se refere aos lançamentos do ano, mas a filmes que vi ou revi, de qualquer época, assistidos em qualquer suporte (cinema, DVD, TV, download ilegal...) e que de alguma forma foram experiências significativas pra mim, sob vários aspectos. Não existe ordem de relevância e nem critérios muito definidos. Divirtam-se e opinem.
GIALLO, Dario Argento, 2009
Por que quem não gosta de terror não gosta de cinema.
Sou fã de Dario Argento, o influente mestre do terror italiano. Seus filmes são exercícios de estilo, de cenários coloridos, impressionante uso de movimentos de câmera, música poderosa e atmosférica (nos 70 compostas e executadas pelos progressivos góticos Goblin) e roteiros que quase sempre priorizam a lenta construção da angústia.
Os constantes assassinatos são gráficos, e notáveis pelo apuro técnico e criatividade mórbida de sua execução. Em Argento as mortes são inusitadas, às vezes patéticas, invariavelmente violentas. Giallo, seu longa mais recente, é de 2009 e protagonizado por Adrien Brody. É um suspense policial que carrega a marca inconfundível de seu artesão.
O roteiro, meio esquizofrênico, apresenta poucas revelações, o que demonstra que Argento nunca foi, e continua não sendo, um autor do estilo “redondinho”. Ao contrário a sensação de voyeurismo sádico que a obra provoca - e isso é característico do diretor - prende a atenção por si mesma, dispensando surpresas excessivamente narrativas e concentrando o suspense nas ações.
Os traumas de infância, mostrados a partir de flashbacks lindamente fotografados, são a base para a construção das motivações dos personagens, herói e vilão, ligados de alguma forma pelas dores do passado. O final é no mínimo irônico, mantendo a tensão pela via oposta a do clichê.
Interessante que giallo (amarelo, em italiano) se refere ao subgênero cinematográfico do qual Argento foi o mais alto mestre. Popular nos 70 e 80, o giallo se caracteriza pela perseguição a um serial-killer, assassino de mulheres, com mortes brutais antecedidas por perseguição, violência estetizada e algum nu. Geralmente o assassino só é descoberto no final e durante o filme vemos suas luvas pretas de couro apertando o pescoço das vítimas, ou outra solução semelhante.
Giallo, o subgênero, influenciou definitivamente o terror moderno. Giallo, o longa, é uma espécie de revisão tardia do movimento, realizada por seu mais importante autor.
OS SETE GATINHOS, Neville D’Almeida, 1980
Pela volta do peitinho no cinema nacional.
Ao adaptar a tragédia carioca de Nelson Rodrigues, Neville D’Almeida toca numa espécie de pornochanchada sofisticada, com atores excelentes e diálogos absolutamente memoráveis: Quem foi que desenhou caralhinhos voadores na parede do banheiro? (que não existe na peça original – lembre-se que Seu Nelson não escrevia palavrões) ou Me chama de contínuo! estão entre as falas incríveis dessa pérola nacional.
Destaque pra Regina Casé – engraçada, espontânea e magrela – e pro malandro carioca perfeito que faz o Fagundão. Adoro Telma Reston como a mãe sexualmente frustrada. Lima Duarte também dá show como o pai de família que ainda crê na pureza da filha caçula, vê sua fantasia ruir quando ela é expulsa do colégio por matar a pauladas uma gata prenha e acaba fazendo da sua casa um absurdamente amoral bordel de filhas.
O filme usa bem as seqüências de tom cômico, com cenas mais debochadas e soltas. Mas pesa a mão quando tem que pesar, criando imagens fortes e simbólicas em encenação rigorosa. E o roteiro, bem apegado à peça, se encarrega de encaminhar os personagens pro fundo do poço familiar, como era de se esperar.
Durante muito tempo, na minha cabeça, Os Sete Gatinhos era tudo de divertido que o cinema brasileiro poderia oferecer: safadeza, inventividade, graça, ator espontâneo, som meio esquisito. Hoje, com apuro técnico, preparador de atores, lei de incentivo e caretice pudica, eu tenho saudades da boca do lixo que não vivi.
ILHA DO MEDO, Martin Scorsese, 2010.
Porque é o que de melhor o cinema americano pode criar.
Acho ridículas as viúvas de Glauber, essas que só acham bonito filme que vem de país sem água potável, bradarem em alto e bom som que “não gostam de cinema americano”.
Somente uma cultura cinematográfica esplendorosa poderia engendrar um criador como Martin Scorsese. Um autor que mergulha em suas obsessões, banha-se em suas referências e dá a luz um filme profundo sem perder de vista a comunicação efetiva com o público. Insistentemente americano, nas referências ao cinema B de suspense dos anos 50, na decupagem precisa e emocional, no uso espetaculoso da música, na composição obscura dos personagens. Scorsese é um brilhante artista de sua cultura.
Em Ilha do Medo estão as obsessões da culpa e redenção características do melhor cinema feito pelo diretor. E numa encenação poderosa, puro espetáculo que se liga à força mítica da natureza como analogia para as tempestades de uma mente perturbada. Saí da sessão em estado de puro regozijo cinemático. Sinto-me feliz por acreditar em Di Caprio como adulto pela primeira vez e voltar a amar Scorsese e os grandes cineastas ianques, esses desgraçados dominadores do mundo.
ZUMBILÂNDIA, Ruben Fleischer, 2009.
Só porque é cool.
Pra mim esse terrir sem nenhuma pretensão foi a comédia do ano. Os caras pegam a mitologia zumbílica inventada por Romero e fazem um filme de aventuras engraçado, sarcástico e adorável, que já nasce cult.
A trama é simples: num mundo meio pós-apocalíptico dominado por zumbis um grupo de sobreviventes tenta não ter seus cérebros comidos por mortos-vivos desgraçados assassinos do inferno. O genial é como o roteiro tira onda de si mesmo, do gênero, da indústria do cinema e do mundo ao redor com precisão, timing e cara-de-pau absurda.
Woody Harrelson (que é cool!) faz o brutamontes que mata zumbis como mosquitos e só quer comer um bolinho em paz. Jesse Eisenberg (de A Rede Social, que agora é super cool) é o cagão necessário para viver uma jornada do herói. Tem ainda Abigail Breslin (que já era cool criancinha em Pequena Miss Sunshine).
Mas o mais cool de todos os cools do universo dos atores cools é ele: Bill Murray. Esse é o ator mais engraçado do mundo e faz toda a diferença em qualquer set que pise e no de Zumbilândia ele simplesmente arrebenta como... Bill Murray.
Corra pra ver, antes que o mundo acabe.
A SINGLE MAN, Tom Ford, 2009.
Por que filme não tem orientação sexual, quem tem é gente.
Eu amo os ternos de Tom Ford, acho o cara lindo, chic e talentoso. Mas dentro da minha mente pobre temia que o filme fosse um desfile de modas. Meu queixo e minhas barreiras ignorantes caíram durante a sessão de A Single Man (me recuso a citar o horroroso nome em português). Obviamente existe o bom gosto geral na direção de arte vintage, que poderia ser fútil não estivesse rigorosamente de acordo com o universo do protagonista e sua vida secreta de aparências. Tudo é lindo, limpo e organizado para esconder a bagunça das vidas interiores que se revelam na tela.
Emocionante a atuação de Colin Firth, e a cena em que ele recebe a notícia da morte do parceiro é de um virtuosismo de contenção e sofrimento que dói como faca em quem vê. Juliane Moore faz o contraponto perfeito como a amiga apaixonada e infeliz. Na formidável sequência em que os dois conversam, dançam, falam-se verdades intoleráveis, brigam e se reconciliam, os atores interpretam a síntese perfeita do que é a amizade.
Tom Ford demonstra nesse primeiro filme uma sensibilidade tocante para a criação da imagem, o ofício delicado da composição visual e da direção de arte, além de uma irresistível dedicação aos sentimentos dos seus personagens e ao trabalho de seus atores. A Single Man revela o talento surpreendente de um esteta.
CANIBAL HOLOCAUSTO, Ruggero Deodatto, 1980.
Por que um filme pode ser perigoso.
“- É absurdo! Como podem chegar a isso? Eu me sinto aviltado! Aviltado!” Só ouvir o meu flattmate e parceiro de incursões cinematográficas esquisitas Malcon Bauer bradar essas palavras indignadas, com seus lindos olhos verdes injetados, a pele alva rosada de vergonha, suor escorrendo pelas têmporas arianas, depois da sessão doméstica de Canibal Holocausto, já vale a experiência e inclusão desse filme na lista.
E pior que é isso mesmo. Aviltante, maldito, absurdo, imoral, louco, criminoso... de tudo já foi chamado esse filme mitológico, apelativo, proibido, obsceno e demoníaco que a gente comprou por 9,99 nas Americanas.
Filmado na Amazônia, o filme conta a história de quatro documentaristas sensacionalistas, que gostam de molestar povos selvagens e embrenham-se na selva para filmar indígenas canibais. Dois meses mais tarde, depois que o grupo não retorna um famoso antropólogo viaja em uma missão de resgate para encontrá-los. Ele consegue recuperar as latas de filme perdidas, que revelam o destino tétrico dos cineastas desaparecidos. Parece com A Bruxa de Blair e congêneres contemporâneos? Sim...e aí está o lado visionário da polêmica.
A excelente direção de Ruggero Deodatto (porque italianos fazem os terrores mais bizarros?) mescla a linguagem ficcional com a documental de forma perfeitamente fluente e crível, trinta anos antes da “inovação” de Bruxa de Blair. O que impressiona acima de tudo é a perversão dos personagens e a absoluta verossimilhança das poderosas cenas ritualísticas, que embrulham o estômago e a moral.
No fundo um filme sobre a maldade do homem branco, que fala disso através de doses pérfidas de canibalismo, morte ao vivo de animais silvestres, empalamentos, sexo sujo em ambientes fétidos (Gérson adora esse filme!), apuro técnico e a perturbadora mise-en-scene realista que fizeram a fama desse filme totalmente demente.
Desaconselhável para gestantes, cardíacos, bichinhas sensíveis e vegans.
PINK FLAMINGOS, John Waters, 1972.
Por Divine.
John Waters, o mestre underground da contracultura americana, tem aqui talvez seu vilipendiante apogeu criativo. O filme classificado pelo próprio como comédia/horror de baixo orçamento conta as aventuras de Divine e sua família disfuncional (as “pessoas mais sórdidas do mundo”) contra um casal de modernos marchands malvados da alta roda. Os vilões cometem atos sinistros como aprisionar e engravidar virgens e vender seus bebês para casais de lésbicas descoladas ou submeter a bela Divine a um tratamento com ácido que desfigura seu rosto e a transforma em pura “arte contemporânea”.
O filme é uma sucessão de cenas entre a escatologia e o deboche, embaladas por uma trilha sonora impagável. Na mais famosa delas, Divine desfila por Nova Iorque, em uma espécie de intervenção urbana, causando geral nohappening, e de repente, come cocô. (hihihihi, eu escrevi cocô, hihihi).
Ah Divine! Como não se apaixonar por essa diva esfuziante, musa inconteste, deusa udigrudi, toda linda, toda gorda, toda queer, toda descaradamente homem/mulher, a nos confundir neurônios e hormônios. Ela é a primeira e única rainha andrógina e híbrida, perigosa e subversiva, muito antes de Drag Queen virar essa coisa inócua de animar festinha infantil.
Numa cena de torcer nossos miolos ela é estuprada... por ela mesma, em sua versão homem. Oi? É muita metáfora gente.
DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA, Sidney Lumet, 1957.
Por que teatro e cinema podem dialogar sem ficar chato.
Um jovem porto-riquenho é acusado de ter matado o próprio pai e vai a julgamento. Doze jurados se reúnem para decidir a sentença, com a orientação de que o réu deve ser considerado inocente até que se vote o contrário, por unanimidade. Onze dos jurados, cada um com sua convicção, votam pela condenação. O jurado número 8 é o único que acredita na inocência do jovem e tenta convencer os outros a repensarem a sentença.
Experiência cinematográfica excitante pelos limites que a direção de Sidney Lumet coloca para a encenação, claramente definidos pela origem teatral do argumento: apenas 3 dos 93 minutos do filme acontecem fora da sala onde o júri está reunido, numa tour de force concentrada, sintética e completamente sustentada na performance dos atores.
E olha que estou falando de atores míticos, monstros como Henry Fonda e Martin Balsam, que atuam como esfinges de poder magnético.
Aos poucos, enquanto o número 8 tenta convencer os colegas de que as provas são insuficientes para condenar o jovem, as personalidades de cada jurado vêm à tona, estabelecendo um jogo arrepiante de revelações, medos, preconceitos e competições. É um retrato cruel e milimétrico da sociedade, visto pelos olhos do artesão impecável que foi Lumet.
Vale a pena olhar também a refilmagem para TV dos anos 90, com Jack Lemmon, que guarda as mesmas características do filme original, com ótimos resultados.
PIRANHA 3D, Alexandre Aja, 2010.
Por que às vezes só o que a gente quer é se divertir.
Eu não espero desse boom de filmes em 3D nada mais que parque de diversões. E na verdade isso é muito cinema.
Lembram como tudo começou? Eram projeções de coisas exóticas em feiras populares, no meio do engolidor de facas e da Monga, a mulher macaca. As pessoas queriam apenas assombrar-se, sentir medo do trem chegando, acreditar que existia gente negra em algum lugar de um continente distante. A origem do cinema foi assim, um novo brinquedo da feira, mágico e assombroso.
A tecnologia 3D de alguma forma resgata esse impulso popularesco e freak dos primórdios. Não espero mesmo ver um drama bergmaniano em 3D, mas que tal um pênis decepado, engolido e depois regurgitado por uma piranha monstruosa, num primeiro plano tão bem feito que parece que dá pra pegar (ui que nojo)?
Piranha 3D é assim, entretenimento puro, raso, trash (com dinheiro), engraçado, nojento, sexy, com peitinho pra todo lado, sem a mínima preocupação de ser levado a sério.
Os adeptos da cabecice que me perdoem, mas esse foi o 3D do ano, infinitamente mais legal que a Alice de Tim Burton. Simplesmente uma delícia.
FACES, John Cassavetes, 1968.
Porque eu amo os atores.
John Cassavetes trabalhava apenas com seus amigos, com pouquíssimos recursos e estabelecia com seus atores uma cumplicidade absoluta. Partia de um roteiro esquemático e inacabado e deixava os atores desenvolverem diálogos e improvisos, concedendo a eles o status de parceiros-criadores. Filmava com muitas câmeras tentando capturar a espontaneidade do momento em que a ação era criada, evitando repetições mecanizadas. A aparência de improviso das cenas é na verdade fruto de ensaios intensos e de uma delicada experiência no universo pessoal de cada ator/personagem.
Faces pode ser considerado a síntese desse esquema marginal de fazer cinema. É a história da crise em que mergulha a vida de um casal formado por um homem mais velho e sua jovem esposa. Por conta do estranhamento entre eles, ambos buscam outros relacionamentos. Ele com a prostituta vivida pela deusa Gena Rowlands, musa do diretor. Ela, numa noitada com amigas num bar, conhece um garoto de programa. Não há flashbacks para explicar o passado de ninguém, não há estudos motivacionais, não há discursos morais, não há nem propriamente uma fábula. Há apenas a câmera entrando cada vez mais fundo na alma dos atores. Em closes estupendos eles se revelam tão sinceros e entregues, imperfeitos e humanos.
Em tempos de intermediários entre direção e elenco, seria bom se os cineastas brasileiros voltassem seus olhos para Cassavetes, um artista que em seus filmes conseguiu extrair da sua relação apaixonada com seus atores um ritmo que é a própria vida.