8 de outubro de 2006

Por que não precisamos da escola do teatro Bolshoi no Brasil...

MAÍRA SPANGHERO
PROFESSORA DE COMUNICAÇÕES E SEMIÓTICA DA PUC/SP

Para quem nunca ouviu falar na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, trata-se de um empreendimento encabeçado e implantado pelo casal Joseney Braska Negrão e Antônio João Ri­beiro Prestes, em 2000, como única filial de uma escola que não existe na Rússia. O que existe são o Balé Bolshoi, o Teatro Bolshoi (ambos funda­dos em 1776, em Moscou) e o Centro Coreo­gráfico. Esse detalhe não passou despercebido pela imprensa especializada, e a denúncia pode ter sido um dos fatores que levaram à mudança do nome de Escola do Balé Bolshoi para Esco­la do Teatro Bolshoi no Brasil. Prestes é o repre­sentante da empresa Paramount Advisory Services Limited, que responde pelo Bolshoi no Brasil, num contrato que dura até 2009. De qual­quer modo, o que importa, neste momento, érefletir sobre a importância deste acontecimento para nossa sociedade e a relevância de sua conti­nuidade no atual estado de exceção (ver Giorgio Agamben) em que nos encontramos. Por que cargas d'água a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil seria um dos melhores investimentos para o setor cultural de nosso país e, especificamente, para nossas crianças e jovens?

Antes de continuar, um rápido parênteses. A idéia aqui é que a reflexão tenha um sentido fundamentalmente coletivo e não seja pautada num interesse individual ou restrito. Isso signifi­ca que eu não estou pensando nos meus filhos, mas nos f1lhos do Brasil. Para tanto, é preciso não levar em consideração nem a ascenção de carreiras políticas, nem as contas bancárias, nem, tão-somente, a possibilidade da minha filha ser uma das bailarinas talentos as a ser revelada que, depois, se tiver sorte, será importada para algu­ma companhia de algum país rico do hemisfé­rio de cima. Suponho que exportar artistas não está entre as principais atribuições de um país em desenvolvimento. Além do mais, vale assina­lar que o mercado interno para bailarinas clássi­cas é reduzido, dado o número pequeno de com­panhias profissionais e a quantidade de escolas e academias brasileiras que as formam, sem falar nas escolas dos próprios teatros municipais. Desse modo, parece bastante razoável questionar se esse"negócio da Rússia" não é, na verdade, um "ne­gócio da China".

O aspecto econômico talvez seja o mais delicado de todo esse faz-de-conta, devido às investigações judiciais, à exigência de transparên­cia financeira e à responsabilidade social com o uso de recursos públicos. Vale lembrar que só o patrocínio dos Correios foi de dois milhões, e estima-se que existam outras tantas cédulas en­volvidas. Como se sabe, a matriz da escola que não existe cobra 130 mil dólares anuais pelo di­reito de uso de sua marca, como seria de se su­por em qualquer franquia. Se não fomos consul­tados antes, mas se pudermos opinar agora, valeria a pena repensar se temos mesmo a necessidade de pagar pelo aluguel da grife de um método, se temos profissionais alta­mente capacitados em nosso próprio país. Será que não estamos desembolsando além da conta pelo uso de uma marca e, por adi­ção, pela cessão de honorários de USS 192 mil anuais para professores e pianistas russos? Por que será que não estamos valorizando o sufici­ente os profissionais qualificados que atuam em nosso mercado? E, por fim, por que não cria­mos melhores formas de intercâmbio?

A questão financeira fica ainda mais delica­da quando comparamos a Escola com outros projetos. O balanço custo-benefício entre verba investida, natureza do empreendimento, núme­ro de pessoas beneficiadas e de que modo cha­ma a atenção pelo desnível (considerando nesta matemática apenas a parte de recursos públicos). Quem se interessa por projetos sociais na área de dança precisa conhecer iniciativas que também vêm tendo sucesso, mas numa outra dire­ção. São propostas que estimulam o protagonismo e a cidadania, ao contrário do anterior, que reforça o processo de dominação/ colonização e a repetição de estéticas anacrôni­cas. Em Araraquara (SP), a Escola Municipal de Dança Iracema Nogueira foi baseada na bem­ sucedida experiência da Escola Municipal de Dança de Caxias do Sul (RS) e vem efetivando um trabalho de inclusão há três anos.

No Rio de Janeiro, o Dançando para não Dançar é realizado desde 1995, com o o objeti­vo de dar acesso à profissionalização, através do ensino do balé clássico, às crianças moradoras de dez comunidades cariocas de baixo poder aquisitivo. A associação Dançando para não Dançar possui convênios com a escola de Balé Staatliche Ballettschule Berlin e com o Balé Na­cional de Cuba, o que é bem diferente de pagar franquia. O projeto recebe investimento menor que 500 mil e atende 450 crianças.

Outro exemplo de baixo investimento e alto retorno é o Núcleo de Dança Votorantim, no in­terior paulista, uma proposta criada e coordena­da, desde 2001, pela Quadra - Pessoas e Idéias, em parceria com a Prefeitura Municipal de Votorantim e com o recente apoio da Empresa Votorantim Cimentos (Unidade Sta. Helena/Sal­to). Nesses cinco anos de existência, 346 pessoas, entre 8 e 35 anos, participaram gratuitamente das atividades oferecidas (diversas aulas de dança, te­atro, vídeo, etc.), além dos encontros especiais, como o Papo Papai, que atendeu 975 familiares. Nesse meio tempo, foram também produzidos 29 espetáculos de rua, 16 para o palco e 45 performances que acontecem em bairros perifé­ricos, cidades vizinhas, outros Estados, feiras li­vres, bancos. praças, escolas municipais e estadu­ais, universidades, terminais de ônibus, igrejas... O público estimado até junho deste ano estava perro dos 159 mil espectadores. Esses números indi<:an1, por acréscimo, um outro detalhe: toda a comunidade (família, amigos, pessoas de passa­gem. crianças, jovens, adultos, etc.) é integrada e participa. Para se ter uma idéia da desproporção, os recursos públicos destinados ao Núcleo de Dan­ça para este ano ficaram em RS 67.000,00. Se di­vidíssemos este valor por mês, chegaríamos a duas conclusões assustadoras: primeiro, pode-se fazer muito mais com muito menos e, segundo, não há mais cintura para tanto jogo. A verba precisa aumen­tar, pois administrar ações coletivas desse porre com 6 mil reais men­sais exige um rebolado que não épra menos. Já pensou o que pode­ria acontecer se uma parcela dos re­cursos destinados à Escola do Tea­tro Bolshoi fossem encaminhados para Votorantim?

E não é só isso. Com uma metodologia em constante transfor­mação e adaptação (compatível com a realidade complexa em que vivemos), um dos diferenciais mais importantes do Núcleo é apostar na dança como ferramenta para construir cidadania. Quer dizer, a dança oporrunizando um espaço para o conví­vio das diferenças. Os coordenadores Mar­celo Proença e Rodrigo Chiba não têm a pre­tensão de formar bailarinos profissionais, po­rém, não perdem essa perspectiva de vista nem um minuto. Uma das provas disso é o excelente "TPM (testosterona precisando de moderação)", espetáculo criado por um grupo de adolescentes, que tratou cenicamente - de modo responsável, sutil, inteligente, bem-humorado e sincero - da­quilo que acontecia em suas vidas. Se em Votorantim o que ganha força é a cultura do cole­tivo e do protagonismo social, em Joinville o que se alimenta é a cultura do pódio e a estruturação de hierarquias fixas.

O sentido pedagógico e artístico implica­do nesta ação é infinitamente mais eficaz do que o ensino do método Vaganova, mesmo nome da famosa bailarina Agrippina Vaganova, o mé­todo adotado pela Escola. Apesar de todos ter­mos mãos, pernas, braços, cabeça, não seria um risco muito grande afirmar que os corpos da Rússia são razoavelmente diversos dos nossos. Comem coisas diferentes, bebem mais vodca do que cerveja, estão expostos a um clima mui­to mais frio, falam outra língua, possuem uma trajetória histórica, política, social e cultural sin­guIar, entre outras inúmeras características dis­tintivas. Por que, então, deveríamos importar (e pagar) pelo uso de um modelo de treinamento corporal e cultural que se desenvolveu para aqueles corpos e não para os nossos? O que está se en­sinando de fato? Para quê? Para quem?

Para quem desconhece a situação dos pro­fissionais da dança em nosso país, é preciso sa­ber que não contamos com nenhuma política pública que atenda às nossas necessidades nos planos federal, estadual e municipal, exceto por algumas poucas iniciativas, geralmente fruto da inteligência e comprometimento específicos de algumas pessoas, em alguns mandatos. (Lem­brando que não se pode reduzir política cultural a leis de incentivo. Outro dado relevante a ser lembrado é que Santa Catarina abriga um dos mais importantes grupos de dança do mundo, o Cena 11, e a companhia luta constantemente pela sua sobrevivência através de patrocínios, que, em geral, são insuficientes. Em contrapartida, cifras que parecem exageradas são destinadas ao culti­vo não-antropofagizado da cultura russa em nos­sas terras. Tem alguma coisa estranha nessa ma­temática, ainda mais diante dos mais de 15 anos de esforços e trabalho árduo que o Cena 11 vem dedicando para construir uma Iinguagem artísti­ca de excelência. Além da qua­lidade da produção/criação artística valiosa (ao contrário da importação estética colo­nizadora) e da divisa cultural, a existência de uma compa­nhia como essa estabelece um ambiente propício para a profissionalização de inúmeras outras pessoas, como profes­sores, produtores, iluminadores, figurinistas, maquiadores, músicos, técni­cos, bailarinos, etc., o que re­vela o caráter multiplicador contido num investimento desse tipo.

A escravidão cultural está tão encarnada em nós, que muitas vezes não nos damos conta dela. Mas, se pararmos para ponderar, não parece muito natural achar que o que vem de fora é melhor do que aquilo que pode ser produzido por nós. O refutável dessa relação é a assimetria de valor entre o estrangeiro e o nacional. Sem esquecer que os intercâmbios são bem-vindos, pois é no miscigenar que as culturas se mantêm vivas e se propagam com mais força.

Tenho que concordar com o Manco Asturras e afirmar que estamos desperdiçando o nosso precioso Oswald de Andrade (lê-se Osváldi) com os ensinamentos de sua operação antropofágica, herdada daquilo que para nós é mais legítimo, os índios caetés.

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